“SOB AS CINZAS DO TEMPO”

 ANÁLISE DA OBRA ATRIBUÍDA AO DR. INÁCIO FERREIRA, PSICOGRAFADA POR CARLOS BACCELLI
                                                                                                     
          Imaginemos as lutas e as dificuldades pelas quais passou o Dr. Inácio Ferreira, durante os cinqüenta anos dedicados à psiquiatria, exercida corajosa e pioneiramente num hospital espírita. Foram tempos difíceis, mas que lhe possibilitaram os méritos que o levaram, depois de desencarnado, à direção de importante setor hospitalar no Mundo Espiritual.

          Inácio Ferreira passou a ser, ao lado de Bezerra de Menezes e de Eurípedes Barsanulfo, referência no tratamento psiquiátrico à luz do Espiritismo. Mas, eis que, certamente idealizado por inimigos – seus e da Doutrina Espírita – está sendo levado a público um verdadeiro programa de comprometimento da sua figura de médico e de espírita, nessa verdadeira caricatura que nos é apresentada através das obras mediúnicas psicografadas por Carlos A. Baccelli, em que o ilustre médico é mostrado como espírito vulgar, pueril, irritadiço, rude e irreverente.

          Como é que se pode imaginar que um Espírito a quem foi atribuída a direção de um setor de importante instituição hospitalar no Mundo Espiritual apresente-se assim? Admitindo-se que teve falhas durante a sua encarnação, que fosse, para ele, usual a franqueza rude, a ojeriza aos clérigos, que fosse ele um fumante inveterado, seria crível que voltasse exibindo suas falhas? Até seria compreensível que, objetivando fins pedagógicos, as declarasse e, humildemente, se penitenciasse delas. Mas, o que se vê é realmente o contrário. Ele mostra, até com certa ufania, os seus defeitos. Tendo-se em vista a natureza eminentemente educativa do Espiritismo, entende-se que, numa obra espírita, quando há o relato de uma atitude equivocada, menos edificante, deve haver um comentário que mostre claramente o seu aspecto negativo, a fim de que a gravidade das cenas não sejam minimizadas, passando ao leitor menos esclarecido a idéia de que se trata de algo mais ou menos natural.

          Assim, entendemos como ensinamento negativo, indução ao erro, essas repetidas referências ao vício de fumar, às páginas: 28, 29, 37, 44, 58, 62, 85, 101, 117, 119, 135, 142, 159, 161, 162, 166,167, 179, 189, 203, 218, 228, 244, 248, 263.

          Submetemos à sua apreciação o comentário que fazemos de alguns parágrafos da obra, transcritos em itálico, seguidos dos números das páginas, entre parênteses.

          Abri a gaveta da escrivaninha, acendi um cigarro – o que, hoje, para um médico, à frente do seu paciente, seria um comportamento absurdo, entretanto reconheço, a irreverência sempre fez parte do meu modo de ser; sempre detestei as chamadas convenções sociais, por isto, quanto mais me provocavam, mais animado eu me sentia para lutar em prol das minorias. (58)

          Será essa figura de um Espírito que se ufana de ser irreverente, birrento e de ter sido fumante inveterado, pouco delicado em suas expressões, um exemplo a ser apresentado ao público por uma Doutrina que pretende trazer de volta os ensinamentos educativos de Jesus? Admitamos que tivesse sido assim enquanto viveu na Terra. Mas, hoje, quando se apresenta como diretor de um hospital psiquiátrico localizado no Mundo Espiritual, é-lhe lícito declarar essas falhas, sem nenhuma orientação ao leitor, que pode tomá-lo como modelo?

          Depois de vinte minutos de monólogo (Era a parte da  Medicina em que não me interessava ouvir os pacientes como se eu fosse um padre vestido de branco), o fazendeiro se revelou. (58)
          Como pode um psiquiatra não ouvir, com paciência, o seu paciente?
          O senhor tem um diagnóstico para o meu caso? Se preciso, eu me internarei. Volto a Ribeirão, invento uma viagem longa e venho... (59)
          Conhecendo a gravidade do seu caso, que era uma forte atração homossexual, o paciente estava preparado para suicidar-se. Depois de ligeira conversa, entregou o revólver ao Dr. Inácio e ofereceu-se  para internar-se, a fim de receber tratamento. Observe-se como reage o médico psiquiatra...
          Deixando a caneta e o bloco de lado, aconselhei:
          – Eu acho que você deveria tomar alguns passes, procurar orar com mais freqüência, tendo o propósito de fortalecer a vontade... Por que você não freqüenta um centro espírita em Ribeirão Preto? Você é um homem rico: o Espiritismo luta com muita dificuldade para manter as obras sociais que desenvolve... Procure se sentir espiritualmente mais útil aos semelhantes. Vou ser sincero com você: o seu caso não tem solução da noite para o dia; não vou interná-lo sem necessidade... (63)
          Um suicida em potencial, embora tendo deixado o revólver, continuava doente. Foi despachado sumariamente. Seria tão inocente esse médico, a ponto de acreditar que, com meia dúzia de palavras, havia convencido, de uma vez por todas, o paciente a não se suicidar? Não é isso que se aprende no Espiritismo...
          – Então – disse-lhe, contrariando talvez a opinião de muitos confrades puritanos (aliás, esqueci-me, linhas atrás, de falar também quanto sempre detestei a hipocrisia dos fariseus, dos modernos fariseus travestidos de espíritas), seria interessante que você se separasse de sua esposa... Ela está jovem e quem sabe consiga refazer a vida. A separação conjugal não anularia, diante dos filhos, a sua responsabilidade de pai amoroso. Você adiaria a solução do problema para uma outra vida. Tudo, menos o suicídio!... (64)
Numa única consulta, conhecendo apenas superficialmente o drama do paciente, aconselha-o a separar-se da esposa. E de se estranhar que, na condição de psiquiatra espírita, tendo a facilidade de uma consulta aos Espíritos, através da excelente e segura médium Maria Modesto Cravo, não tenha tentado um tratamento. Além disso, retrata, no livro, de modo rude, sua posição à época, fazendo referência pesada e desairosa a espíritas, numa atitude pouco compatível  com a de um médico que se propunha curar perturbações mentais. Será que continua assim, depois de desencarnado? Se não, por que perdeu a oportunidade de deixar um bom ensinamento, declarando que hoje seu entendimento é outro? O leitor poderá mirar-se nesses exemplos e tomá-los como modelos.
          O adiantado da hora me fez apressar o término da consulta. O relógio de bolso, que consultei sem cerimônia, assinalava quinze minutos depois das onze. Eu precisava almoçar e ir para o Sanatório. (64)
          Será que queria livrar-se do paciente porque chegara a hora do seu almoço?
          Balbuciei algumas palavras censuráveis que se misturaram ao ribombar dos trovões e segui adiante. (66)
Poderia ser essa declaração tomada como um ato de humildade, se o seu autor a reconhecesse como algo reprovável que fazia na Terra. Mas, agora, na condição de autor de um livro espírita, deveria declarar alto e bom som que essa não é atitude de um espírita. Pode ser que até agora não tenha logrado desfazer-se do mau hábito de praguejar, mas deveria mostrar claramente que tal atitude é reprovável.
          Note-se o excesso de realismo em descrições perfeitamente dispensáveis, às páginas 72 e 73. Parece concessão à licenciosidade de alguns autores de literatura moderna.
          – O assunto é complexo, Inácio. Você veja: há pouco tempo, estando em casa orando, apareceu-me o espírito Eurípedes Barsanulfo. Preocupada com a situação que estamos vivenciando no Sanatório, perguntei a ele qual o motivo pelo qual as entidades renitentes não eram esclarecidas no Além... Ele me respondeu, afirmando que não é por falta de empenho dos nossos Maiores que isso não acontece; segundo Eurípedes, o problema é falta de receptividade psíquica: essas entidades deixaram o corpo, mas continuam vivendo nos subterrâneos da Vida. Ele até me citou o caso do espírito profeta Samuel, que, segundo a Bíblia, subiu para conversar com Saul, através da faculdade de uma pitonisa... Ora, se Samuel subiu, é porque o seu espírito, apesar de ter sido um dos profetas mais célebres da Antigüidade, estava recolhido no interior da Crosta... (152)
          Diante desse relato atribuído à médium Maria Modesto Cravo, seria de se perguntar: será que os Espíritos Orientadores sempre dependem de médiuns para entrar em contato com Espíritos que ficam presos à Crosta? E nos países onde não há mediunidade atuante como no Brasil? Se o Profeta Samuel habitava planos sub-crostais, o que será de nós?
          – Isto deve ser gente do Xandico – resmunguei em voz alta, acendendo um cigarro e incinerando o abjeto bilhete, na impossibilidade de incinerar o seu autor. (179)
          Essa, a reação do Dr. Inácio, ao ler um bilhete insultuoso deixado à sua porta. Modo irreverente de referir-se a um a pessoa de outra religião. Se o Autor era assim, irritadiço, à época, deveria agora fazer uma ressalva, mostrando que reconhece o seu erro, a fim de que a atitude equivocada não sirva de modelo. Entretanto, ao longo da obra,  tem-se a impressão que lhe causa um certo prazer em mostrar-se agressivo, ríspido, rude.
          Em suas manifestações na cidade de Sacramento e Santa Maria, quando se opusera frontalmente ao trabalho missionário de Eurípedes Barsanulfo, Torquemada emergira dos porões da Espiritualidade com imenso séquito de seguidores; segundo eu soube mais tarde – pasmem todos! – fora ele que inoculara o vírus da gripe espanhola, que, em 1918, obrigara o Apóstolo da Mediunidade em terras do Triângulo Mineiro a interromper o seu trabalho... Possível ou impossível? A resposta a semelhante indagação ainda não está comigo. Quem tenho, no Mundo Maior, procurado auscultar, a respeito do assunto, cala-se inexplicavelmente. (193)
          Como tomou conhecimento dessa história? Mesmo no Mundo Espiritual, não pôde saber se trata de verdade ou boato? Se não tem certeza por que relata um fato que se reveste da maior gravidade? A Doutrina Espírita não trata de casos de “ouviu-se dizer...”
          O episódio do Espírito Torquemada ter ficado escondido, trancado num quarto do Sanatório, aguardando reencarnação, é fato inusitado. (233/234)
          Seria interessante consultar um zoólogo a fim de se verificar como uma sucuri, tendo ainda uma cabeça de vitelo no estômago, devorara duas galinhas antes de ir engolir uma criança, que estava no berço, dentro de casa. Se os Espíritos que passaram a perseguir Torquemada tiveram o poder de descobri-lo encarnado, tiveram o poder de orientar uma sucuri a fim de engoli-lo, como não o descobriram no seu cárcere no Sanatório?  (256/257)
          Ainda segundo informações que os amigos que, semanalmente, vinham a Uberaba nos traziam, o padre da pequena capela rural das imediações recusara-se a batizar o menino! Pasmem todos!: a Igreja, que fizera do espírito Tomás de Torquemada aquilo em que ele se transformara, agora o vomitava, considerando-o, com certeza, um filho de Satanás. Impressionante a desfaçatez das instituições governadas pela hipocrisia dos homens!... (244)
          Referência desairosa e desnecessária à Igreja.

          Queremos deixar claro que, ao fazermos esta análise não nos moveu o intuito de denegrir a imagem do Médium, uma vez que nossa crítica se direciona sobre a sua produção mediúnica. O irmão Carlos Baccelli merece todo o nosso respeito, mas a sua obra mediúnica toda a nossa crítica. Isso aprendemos com Jesus, que sempre criticou o pecado, nunca o pecador.

          Fazemos algo que gostaríamos que fizessem com os nossos escritos e nossas palestras: exame crítico, fraterno, embasado na Doutrina Espírita, dentro do critério aconselhado pelo Apóstolo Paulo: “Examinai tudo. Retende o bem.” (I Ts, 5: 21)                  

 José Passini                                                                                                                
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